quarta-feira, 3 de setembro de 2008

O encontro com Nellie Bly em 1889

O encontro com Nellie Bly em 1889
por
Herbert Lottman

Em 1889, Nellie Bly, jornalista nova-iorquina do World, propôs-se a bater o recorde de Phileas Fogg, em referência ao livro A volta ao mundo em oitenta dias (escrito por Júlio Verne). O jornal para que trabalhava manteve o suspense do dia-a-dia das crónicas da façanha. Vestida com roupa de homem, gorro, botas e uma pequena mala de viagem, Nellie Bly partiu de Nova York a 14 de Novembro de 1889. Primeiro atravessou o Atlântico, chegou a França onde entrevistou Júlio Verne, passou por África, Índia, Japão, e depois de atravessar o Pacífico entrou no território americano aproximando-se pouco a pouco ao ponto de partida. Por cada cidade que passava, Nellie enviava as suas notas. Os leitores apostavam no dia em que chegaria. Nellie regressou a Nova York a 25 de Janeiro de 1890. Tinham decorrido 72 dias, seis horas e dez minutos. Para a sua proeza tinha-se valido de cavalos, barcos, carruagens e muitos camelos. Bly estabeleceu um novo recorde mundial ao dar a volta ao mundo em tão pouco tempo, mas meses depois, George Francis Train rompeu esta nova marca ao completar a dita viagem em 62 dias.

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Elizabeth Cochrane era oriunda de uma localidade na Pensilvânia. Começou sem querer a sua carreira de jornalista ao escrever ao redactor-chefe do Pittsburgh Dispatch para protestar contra um artigo com um conteúdo muito tradicional que se intitulava: «Para que servem as mulheres?». Não há dúvidas que era uma pioneira no terreno do feminismo. Em 1889, com o pseudónimo de Nellie Bly, estava no topo da sua carreira e a ponto de se converter numa celebridade de fama mundial, apesar de apenas ter vinte e dois anos. De insolente beleza e atitudes determinadas, vestia roupas práticas e cómodas e parecia disposta a tudo. Um ano antes havia conseguido ingressar num famoso manicómio situado numa ilha do East River, perto de Manhattan, e passado lá dez dias acumulando informação para o jornal diário nova-iorquino The World de lord Joseph Pulitzer. O resultado dessa estância foi uma serie de artigos contundentes e um livro: Ten Days in a Madhouse (Dez dias num manicómio).


Nellie Bly em 1890

Tratava-se agora da intrépida jornalista encomendar a Pulitzer uma ambiciosa e agressiva campanha que havia de assegurar ao World (em cujo cabeçalho surgia a seguinte afirmação: «Garantimos que a nossa tiragem é maior que a soma da de todos os jornais americanos») a primeira posição na feroz competição que enfrentava aos jornais diários nova-iorquinos. Para isso Nellie Bly propôs-se a dar a volta ao mundo, com o propósito de que bater o recorde de oitenta dias de Phileas Fogg. «É o grande sonho de Júlio Verne compatível com a realidade?», perguntava o director do World a 14 de Novembro de 1889. O artigo prometia que o jornal ia converter esse sonho em realidade. «Vários milhares de pessoas têm lido com interesse a viagem imaginária que Júlio Verne, esse príncipe dos sonhadores, conseguiu proporcionar à sua personagem, Phileas Fogg.» Ninguém tinha levado a cabo uma proeza assim na vida real e, portanto, «correspondia ao World abrir uma brecha nesse campo, como o tem feito já em tantos outros. Hoje às 9.30h, Nellie Bly, que tão bem conhecem as milhões de pessoas que têm lido os palpitantes relatos onde tem referido pessoalmente as suas proezas, irá se pôr a caminho, como uma autêntica Phileas Fogg do sexo feminino [...].»

Ao narrar a sua aventura, o Phileas Fogg do sexo feminino afirmou que a viagem foi ideia sua. Tinha por costume pensar aos domingos e submeter, no dia seguinte, à aprovação ou à rejeição do seu redactor-chefe as ideias que lhe tinham ocorrido. Antes de lhe falar sobre isso, tinha-se informado numa companhia de navegação e descoberto que se podia cobrir o itinerário em menos de oitenta dias. Inteirou-se logo de que o seu jornal tinha já previsto uma volta ao mundo, mas com um jornalista masculino. O director afirmou que ela não podia realizar essa viagem sem protecção, que levaria muitas malas e que, além disso, apenas falava inglês... Insistia que apenas um homem pode levar a cabo esse desafio. «Muito bem –recordava o que havia respondido, furiosa-. Envie um homem e eu sairei ao mesmo tempo em representação a outro jornal e ganharei.»

Está claro que Nellie saiu. A reportagem foi adoptando infinitas modalidades. Até nos dias em que não chegava nenhum telegrama de Nellie Bly, o World podia falar aos leitores das toneladas de cartas que o jornal recebia -algumas delas eram, inclusive, pedidos de casamento-. Mais tarde, o jornal foi alimentando o suspense com noticias de veículos de caminhos de ferros que se atrasavam e outros transbordos falhados, ou com possíveis naufrágios. Nellie tinha embarcado num navio chamado Augusta Victoria e o jornal referia que outro barco, no que ela deveria estar a viajar, tinha-se atrasado devido a uma tempestade ou que tinha estado a ponto de naufragar. Depois, a 22 de Novembro, a primeira página informou:

«NELLIE BLY NO OUTRO LADO. APÓS UMA ACIDENTADA VIAGEM, A GLOBE-TROTTER DO WORLD ENCONTRA-SE HOJE EM SOUTHAMPTON. CONTANDO COM TEMPO SUFICIENTE, VISITARÁ JULIO VERNE NA FRANÇA.»


A volta ao mundo de Nellie Bly

A visita a Júlio Verne foi uma improvisação, ou, pelo menos, é o que conta a lenda. Segundo Nellie Bly, Júlio e Honorine tinham escrito ao correspondente do World em Londres a perguntar se seria possível que a jornalista passasse em Amiens ao cruzar o continente. «Oh! Como eu gostaria de os conhecer!», exclamou esta. Sentia não ter tempo para o fazer. «Se poder aguentar duas noites sem dormir nem descansar, creio que é possível», respondeu o correspondente (um tal Tracey Greaves). Mas, algum tempo depois, o correspondente em Paris desse mesmo jornal, o inglês Robert Sherard, apresentou uma versão mais fidedigna dos acontecimentos. «Pensamos que seria uma boa publicidade para a "história" que a jovem conhecesse Júlio Verne em Amiens enquanto cruzasse França a caminho de Brindisi. Ao princípio, o velho cavalheiro [quer dizer, Júlio Verne] não compreendia onde estava o interesse de semelhante encontro e teve-se que recorrer a uma certa dose de persuasão para conseguir aceder a ele. A tarefa era um tanto mais dificultosa pois estávamos aproveitando a sua amabilidade para os nossos próprios interesses.» Tal foi o espontâneo convite de Júlio Verne! Em qualquer caso, o encontro foi um êxito. «Recorri a muita conversa para despertar o interesse de Verne pelo acontecimento -recorda Sherard- que teve a amabilidade de receber na estação de Amiens com um ramo de flores a jornalista americana.»

«Ao vê-lo -referiu Nellie- senti o mesmo que teria sentido qualquer mulher na mesma situação. Perguntei-me se levaria a cara manchada de fuligem e se estaria despenteada. Disse a mim mesma com uma certa melancolia que se tivesse viajado num veículo de caminho de ferro americano teria podido arranjar-me durante a viagem, para descer do veículo em Amiens e saudar o ilustre escritor e a sua mulher tão asseada e bonita como se os tivesse recebido na minha própria casa.» Verne, por seu lado, está encantado por conhecer «esta jovem e formosa norte-americana», como contou numa carta ao jornal Le Temps. «Miss Bly [...] pareceu-me muito enérgica e muito determinada. Parecia uma jovem perfeitamente capaz de acabar a viagem no prazo previsto.»

Júlio abriu caminho até aos coches que esperavam à frente da estação. Nellie caminhava junto a Honorine, calada pois não falavam o mesmo idioma. «Caía a tarde. Durante o percurso pelas ruas de Amiens, pude ver por breves momentos lojas tentadoras, um parque muito bonito e muitas amas que empurravam carrinhos de bebé», lembra Nellie Bly. O coche de Júlio Verne seguia perto do seu. «Aumentou o passo para se juntar a nós e abriu uma porta que havia no portão», conta. Até mais à frente não tinha reparado no leve coxear do escritor. «Um cão negro e fraco apressou-se a dar-me as boas-vindas. Aproximou-se com um salto, um olhar doce e cheio de afecto. Embora goste de cães e me tenha agradado a forma como este me recebeu, não deixei de ter medo que as suas veementes carícias manchassem a minha dignidade e me fizesse cair de joelhos na casa do célebre francês.» Subiram a escadaria em mármore, cruzaram um «precioso jardim de Inverno, que não estava lotado de flores -comenta a jovem- mas que contava com a quantidade precisa para que se pudesse ver e apreciar a beleza das diferentes plantas», e chegaram a um amplo salão onde Honorine acendeu a lareira «com as suas próprias mãos». A visitante teve então tempo de se fixar no famoso Júlio Verne: «Os cabelos, brancos como a neve, brilhavam num artístico despenteado. Ocultava a parte inferior da cara uma espessa barba, cuja brancura rivalizava com a do cabelo, mas tanto as cores sãs da pele e o luminoso brilho dos olhos negros, velados por espessas sobrancelhas brancas, como a palavra ágil e os gestos animados, mostravam energia, vida e entusiasmo.» Calculava que pudesse medir à volta de um metro e sessenta e cinco de altura.

É evidente que conversaram recorrendo a um intérprete, Sherard. «Esforço-me por me manter informado do que ocorre nos Estados Unidos e agradam-me muito as centenas de cartas que os norte-americanos que lêem os meus livros me enviam –disse-lhe Verne-. Não posso imaginar nada mais tentador que viajar pelo seu país desde Nova York até São Francisco.» Ela descreveu-lhe o seu itinerário que, desde Amiens, a iria levar de novo a Calais para tomar o expresso com destino a Brindisi. Lá, embarcaria rumo a Port-Said, Israel, Suez, Adén, Colombo, Penang, Singapura, Hong Kong, Yokohama, São Francisco e Nova York. «Porque não vai a Bombaim, como o meu personagem Phileas Fogg?», perguntou Verne. «Porque me interessa mais ganhar tempo do que salvar uma jovem viúva», respondeu ela. «Quem sabe se não salva um jovem viúvo antes de regressar», disse Júlio Verne com um sorriso. E ela «sorriu com um sentimento de superioridade, como o farão sempre as mulheres livres de obsessões perante insinuações nesse sentido».

Mas tinha chegado a hora de retomar a viagem. Se perdesse o transporte de Calais, restava-lhe regressar a Nova York, pois perderia uma semana. Todavia, pediu a Júlio Verne que lhe mostrasse rapidamente o seu local de escrita. «Ao ver o resto da casa -recorda-, tinha imaginado que o local de escrita do senhor Verne seria um quarto muito belo. Mas, ao entrar nele, fiquei muda de espanto. Abriu a portada da janela, a única da habitação, e a senhora Verne apressou o passo para nos alcançar e acendeu a lâmpada de gás colocada em cima da lareira.» Que quarto tão pequeno!, pensou, atónita, a jornalista. É quase tão pequeno como o gabinete de minha casa. «Era também um quarto austero e desnudo. Debaixo da janela havia una mesa de trabalho e foi espectacular não ver nela a acostumada desordem que costuma cobrir as mesas dos escritores [...].» Por cima da mesa havia um monte muito ordenado de manuscritos, que Júlio Verne permitiu examinar. Viu que havia palavras riscadas aqui e acolá, mas sem alternativa, o que indicava que introduzia melhorias no seu trabalho suprimindo detalhes supérfluos, que nada acrescentava. Não havia no quarto nada mais que um único assento -o da mesa de trabalho- nem mais mobiliário, além da mesa, cadeira e um baixo sofá. Desde a janela com persiana podia-se ver o bico da catedral. Aos seus pés, estendia-se o parque e, mais longe, abria-se o túnel do caminho-de-ferro.

Passaram, depois, para a enorme biblioteca, forrada de estantes desde o chão até ao tecto. O seu anfitrião mostrou-lhe um mapa que ela reconheceu logo: o itinerário de Phileas Fogg; com um lápis, Verne traçou nesse mapa o da jovem. Esta recordou mais tarde que tinha a intenção de fazer a viagem em setenta e cinco dias. «Se o fizer em setenta e nove, aplaudo-a efusivamente», respondeu. E disse depois em inglês, enquanto brindavam com os copos de vinho: «Boa sorte, Nellie Bly.»


Caricatura que representa a entrevista de Nellie Bly a J. Verne

Era na verdade uma noite fria. E apesar dos pedidos de Nellie Bly, os Verne acompanharam-na pelo pátio até ao portão. Ao virar-se viu como agitavam a mão para se despedir; «o vento glacial despenteava-lhe o cabelo branco ». Não perdeu os transbordos e foi capaz de «acima de tudo» pegar o correio de Brindisi, como contou no resumo enviado ao seu jornal. E fez, efectivamente, a volta ao mundo em setenta e dois dias, seis horas e onze minutos, apesar dos atrasos horários.


Em 26 de Janeiro de 1890, a primeira página do World estava completamente dedicada a Nellie Bly... e a Júlio Verne. «Bateu-se o recorde. [...] Milhares de pessoas saudaram Nellie Bly até ficarem afónicas. [...] O país inteiro cheio de entusiasmado fervor [...].» Um titulo realçava:

«JÚLIO VERNE ENVIA AS SUAS FELICITAÇÕES

O jornal tinha pedido umas palavras ao «mago de Amiens» e reproduzia agora a sua resposta telegráfica:

NUNCA DUVIDEI DO ÊXITO DE NELLIE BLY. A SUA AUDÁCIA TORNAVA-O PREVISÍVEL. HURRA POR ELA E PELO DIRECTOR DO WORLD. HURRA, HURRA!

Antes de Nellie Bly chegar a Nova York, Roben Sherard já tinha tomado o caminho de Amiens. Júlio Verne sabia que a jovem tinha desembarcado em São Francisco a 23 de Janeiro como também sabia que, graças às melhorias dos serviços ferroviários, apenas se demoraria cinco dias a cruzar os Estados Unidos. Mas estava confiante que a jornalista encontraria forma de ir ainda mais depressa; e foi o que esta fez, embora tenha de dar um desvio pois encontrou a via-férrea bloqueada pela neve.

«Estou encantada -confiou Honorine a Sherard-, ainda que não seja mais porque por fim o meu marido vai recuperar o sossego. [...] Todas as noites dizia: "Miss Bly deve de estar neste sítio, ou no outro." Costumava ir, ao cair da tarde, buscar o mapa-mundo ou o globo e assinalava-me o lugar em que provavelmente estava Miss Bly naquele momento. Cada dia marcava o seu avanço com bandeirinhas nesse mapa grande aí de cima.» O jornalista citou Verne: «É o que disse a minha mulher: lembrava-me continuamente de Miss Bly. O que mais pensava era: Deus, como eu gostaria de ainda ser livre e jovem! Ficaria encantado em fazer essa viagem, ainda mesmo nestas condições: dar a volta ao mundo a toda a velocidade, sem ver quase nada. Punha-me em marcha sem pensar duas vezes e oferecia-me a Miss Bly para a acompanhar.» E Sherard ouviu o comentário de Honorine: «Eu não teria achado graça nenhuma.»

Perguntando ao escritor se pensava usar Miss Bly em alguma obra, Verne respondeu com simplicidade: «É o mais provável. Embora não dê muito bem com as personagens femininas, vou começar a escrever dentro de nada um livro que se chamará "Lady Franklin" [iria se chamar, na verdade, Mistress Branican]. Mais tarde, irá me aparecer seguramente uma situação adequada para esse espectáculo tão bonito perante o que me pôs há mais ou menos setenta dias.»

Na já citada primeira página do jornal apareceria o resumo desta agradável conversa com outro título:

«VERNE DISSE: BRAVO»

O escritor francês encantado com o êxito da viajante do World
Grande triunfo jornalístico
Verne seguia o trajecto passo a passo nos seus globos terrestres
O seu Phileas Fogg derrotado
Uma apaixonante entrevista com o Mago de Amiens
A senhora Verne expressa-se em felicitações
Afluem de todos os lugares grandes elogios para o The World e seus representantes
Este êxito converteu o World no jornal mais famoso do mundo.

Entrevista retirada do site do verniano Cristian Tello e traduzida para português.

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Assim terminamos a série de 8 entrevistas a traduzir para português.
Todas as entrevistas estão colocadas por ordem cronológica de forma a que, quem clicar na secção correspondente, possa analisar a evolução destas.
São bem-vindos todos os comentários a estas belíssimas entrevistas. Participe!

Gostaria de agradecer (mais uma vez) a Carlos Patrício cuja ajuda foi fundamental para a concretização de mais um "sonho" nosso.

4 comentários:

Carlos Patrício disse...

Parabéns ao blog pela tradução e divulgação das famosas e raras entrevistas que Verne concedeu em vida. Eu é que agradeço ao Fred pela oportunidade de participar e conhecer um pouco mais do lado humano de nosso escritor favorito, além de torná-las disponíveis a todos os fãs.
Espero que todos vocês gostem tanto delas quanto nós gostamos, e se surpreendam com os detalhes muitas vezes emocionantes e inesperados que surgem em cada uma delas.

Anónimo disse...

agradeço tambem.

Unknown disse...

Muito obrigada também! Estou encantada com o blog e todo o seu conteúdo, que estou explorando com todo prazer!!!!!!
Terezinha

Morapiaf disse...

O jornal onde Nellie trabalhava lançou um passatempo que consistia em adivinhar em quantos dias esta mulher de armas conseguia alcançar o seu objectivo. Mais do um milhão de participantes deram o seu bitaite e o resultado foi 72 dias e mais uma dúzia de horas.
Para festejar, foi lançado um jogo, datado de 1890 em que dava aos jogadores a experiência de Nellie Bly. Recentemente foi vendido um exemplar por 300 dólares.